POR TREPANADO

Outro dia me vi refletindo sobre o que eu mais andava sentindo falta da noite ao longo dessa quarentena eterna. É óbvio que, por ser DJ, tenho uma saudade tremenda de tocar música alto, ou de ter aquela resposta imediata do público com uma faixa ou virada, para sugar dessa energia e jogar de volta pra pista depois. Mas cheguei à conclusão de que o maior vazio é pela falta da micropolítica de pista. Ou, falando de forma mais direta, de buscar, encontrar e clamar o seu lugar na pista de dança.

Hoje posso ocupar esta posição de DJ, mas eu vim da pista. Foram anos gastando sola de tênis antes de subir para a cabine. E lembro claramente da sensação gostosa que era a de chegar numa festa, ou club, encarar a fila, passar pela hostess, e de sentir o impacto que era a primeira visão daquele mundo mágico, semi-proibido, sentir o clima, dar uma volta para procurar os conhecidos e dar aquela varrida na área até achar um canto para ficar – e dançar, causar ao ponto de você se tornar a referência daquele canto. “Saca aquela turma ali na caixa direita!” (Os ingleses têm um termo legal para esse movimento, chamado “peacocking” – é o “empavonear”.)

Pode parecer uma analogia batida, mas conforme as sociedades se tornaram mais distantes das ordens religiosas no século XX, os clubs e as festas se tornaram igrejas para muitas pessoas: um espaço onde elas podem se conectar com uma experiência coletiva, em busca de algo maior que elas. O que acontece dentro do ambiente de uma festa é uma manifestação poderosa da imprevisibilidade da vida; ela carrega dentro de si mundos e comunidades diferentes, que se colidem e se complementam. Esse frisson você nunca vai conseguir recriar em casa numa live, nem que você distribua kits de realidade virtual para todo mundo. 

Ninguém no Brasil sabe quando vamos voltar a fazer festa e nem se as festas vão se parecer remotamente com as que costumávamos fazer, mas se tudo indica que já falhamos na missão de rever os conceitos durante a pandemia (vide as festas clandestinas), talvez possamos garantir que as pistas de dança serão mais inclusivas nesse retorno — e que as pessoas se sintam ainda mais acolhidas nestes espaços.

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Aproveitar a primeira coluna para agradecer ao convite do Paulo para contribuir aqui para o blog da Capslock e a atenção de quem chegou até esta nota de rodapé.