POR MALKA – 28/07/2021
Nas andanças pelo mundo encontrei muita coisa. A música me levou a lugares, me fez conhecer pessoas. Mas uma coisa é viajar em turnê, passar um ou alguns dias em um lugar. No começo de feveiro desse ano tive a oportunidade de visitar Natal e de fato ficar no nordeste por mais tempo, como havia planejado no passado. Eu ficaria um mês por terras potiguares. Quando Luísa Nascim me chamou, chegou a dizer para eu passar três meses. Eu disse que seria difícil pois tinha muito trabalho de estúdio e que longe de casa seria quase impossível. No fim das contas minha paixão pelas pessoas, pela música e por essa terra me fizeram ficar seis meses. Escrevo essa coluna com o peito vazio já de saudades de tudo que me foi ensinado e preenchido. Escrevo isso na terça a noite e vou embora domingo pela manhã.
Já fazem anos que tento enxergar minha arte com olhos diferentes de quando era nova. Tenho que assumir que para minha geração, pouco mais velha (hoje tenho 36) que chegou a viver em um mundo sem internet, o sonho era ir tocar em Berlim, e de muitos ainda é. Tenho que dizer que isso deixou de ser assim, um sonho, faz um tempo, inclusive estava programada para tocar em Berlim e 4 dias antes de pegarmos o avião para Europa o primeiro Lockdown ocorreu. Melhor assim, se não teria passado meses presa lá tendo que gastar euros (penosa estaria). Sei que não aconteceu dessa vez, mas também sei que inevitavelmente acontecerá. Digo pra vocês que se essa conquista fosse 10 anos atrás seria mais glamourosa na minha mente que era bem mais colonizada. E ainda é, viu? É um trabalho diário decolonizar-se. Hoje penso mais nos EUA e na Europa como um meio de expandir meu trabalho para trazer riqueza de volta para nosso país e nossa cultura e poder aprofundar nossos laços artístico musicais. Não quero romantizar o Brasil porque sou uma travesti no país que mais mata travestis, mas eu entendo que temos que lutar pelo que é nosso, e o Brasil também é nosso.
Sempre nos meus sets lutei por uma música mais misturada, que soasse mais daqui, a cada ano que foi se passando esse desejo foi aumentando e a expressão dele na minha música mais ainda – desde ser excomungada por festa de techno e house por misturar com funk até outras coisas mais, sempre acreditei que precisamos encontrar mais brasilidade na nossa pista de dança de uma forma ou de outra.
O que acontece é que essa estadia longa no nordeste me fez aprender muito que existe uma música eletrônica de uma cultura muito rica e genuína. Não que eu não conhecesse a cultura do paredão, do piseiro, do brega, do tecnomelody, tudo isso foi permeando meu trabalho, quem acompanha sabe que minha aproximação com nomes como Potyguara, Luísa, Keila, Afroito, Otto, Luana Flores e muitos outros não vem de hoje, mas uma coisa é ter uma visão disso estando em São Paulo e outra coisa é viver e poder ver essa música sendo feita na sua frente aqui no nordeste. Tudo além de fazer muito mais sentido, toma proporções muito maiores.
Uma das coisas que mais amei sobre estar em Natal é que, ao contrário de São Paulo, na rua, estabelecimentos, Uber e tudo o mais, a primeira coisa que se nota é que dificilmente você ouve músicas da Lady Gaga, Katy Perry, Beyoncé, Rihanna… Bandas de rock então? Nem se fala. Aqui existe um Brasil que consome Brasil, e por consequência é muito mais brasileiro, e não desse jeito cafona com arminha de dedo. De um jeito brega e muito maneiro. E assim, parece que agora o Brasil todo vem descobrindo como ser Brega é ser cool. Sinceramente? Já faz anos que o clichê paulista de filmes franceses, cachecol e café caro me soam chatos demais. Toda essa pretensão intectualizada só serve pra uma coisa: tentar desentelectualizar o restante da sociedade. E na boa? Preguiça.
Hoje assisti a um vídeo do rapper Febem falando da festa 1010 de BH, que assim, tem uma galera do house e do techno curtindo o som deles, e de como é massa esse crossover, sabe? Que ocorre em absolutamente todas as cenas de música eletrônica no mundo, menos a nossa, que parece tomada por uma vontade enorme de copiar Chicago, Detroit, Berlim.
Ainda bem que nos últimos anos algumas festas e coletivos tem se encarregado de quebrar essas amarras. Tem muita gente, mas muita gente mesmo de fora de olho no novo som do Brasil, e se engana quem pensa que estão de olho nos produtores que copiam os produtores europeus ou norte americanos. Todo mundo tá de olho no som feito com nossas influências daqui. Brasileiro é um povo tão com síndrome de vira-lata, que ainda temos que aguentar almofadinhas que não conhecem nada sobre o funk brasileiro dizendo “mas isso aqui é Miami Bass, pipipi, popopo…”zzzZzzZz. Sério, vai se informar mais sobre o quanto evoluímos dps de pegar um pouco do Miami Bass, seu conhecimento de Wikipedia e repetir como um robô frases que você aprendeu com seus melhores amigos colonizados não vai te fazer um expert em funk, só uma pessoa babaca com visão curta.
Acho urgente cada dia mais aprofundarmos nossas influências de house, techno, drum’n Bass e misturar com piseiro, pisadinha, brega funk, funk. Esses dias fiz um remix de techno para o ATR e Vox Sambou do Haiti e usei timbres de brega funk. O resultado ficou sensacional. Temos que nos permitir, sair da zona de conforto, estamos a verge de fincar nossa bandeira na música eletrônica mundial, e não tá sendo com house, tá sendo com funk e piseiro, como deveria ser, e trazer isso pro universo da rave dentro da linguagem dela, entendo que seja o futuro brilhante que nos espera, porque por aqui o povo já está fazendo essa mistura e todo esse caldeirão em ebulição tá prestes a transbordar pro mundo, e quem é colonizado, vai ficar de fora e depois vai dizer que “estragaram a música de rave” ou “na época boa de rave não era assim”, esse papo tem outro nome…
A verdade é que a rave sempre foi do povo. Em geral, sempre nasceu do movimento lgbt, que consome esses outros ritmos aqui no Brasil. Essa rave higienizada cheia de gente hetero e achando que só pode tocar um tipo de som na pista, esse sim é o espírito fake da rave. Esse sim é um espírito apropriador que ainda acha que pode mandar e desmandar como djs e produtores devem produzir, cagando regras absurdas e impondo limites xenofobicos, racistas e lgbtfóbicos. Já cansei de ver isso na cena eletrônica. É hora de retomarmos a verdadeira essência experimental e de vanguarda – e nunca vamos esquecer: regional. O que fez Berlim o que é, Detroit, Bruxelas foi que as pessoas faziam música da sua região, que façamos então uma música eletrônica mais brasileira.
O nordeste me deu um presente que nunca vou esquecer: lembrar um jeito legal de ser brasileira, algo que tá em falta. Sentir orgulho de ser daqui. Sempre serei grata por isso. Que o futuro venha e por que não? Que ele seja verde, amarelo e azul, mas do jeito legal, sabe?
Comments (1)
Poxa que lindo texto Malka, é algo que venho pensando bastante na minha jornada de descoberta sonora. O quanto a gente esquece de olhar pro regional, entende-lo como parte de nós e o que nos faz único também. O futuro é regional universal experimental e sem fronteiras. Um abraço e obrigado por ser essa potência musical!